sexta-feira, 13 de julho de 2012

"MASCARA-DE-FERRO"

E nós fraquejamos por muito menos ...
 



 
 
 
                                  

                                                                                                                                         Divaldo Pereira Franco

Até onde vai a minha lembrança eu sempre detectava a presença de uma Entidade, um sacerdote romano, respeitável, com ares adversários contra mim, numa atitude agressiva, ameaçando-me, a princípio de forma educada e depois com muita rispidez. E prometendo que, se eu não seguisse as suas diretrizes, ele ia terminar por me destruir.
Mas eu era muito jovem para entender essas sutilezas da mediunidade.
Passaram-se os anos, e quando me tornei espírita, começando a exercer a mediunidade, fui constatando, a pouco e pouco, que ser médium não é uma viagem ao país da fantasia. É uma tarefa muito séria e de alta responsabilidade.
Nesse ínterim, a Entidade começou a dar-me uma assistência negativa, pois, à medida que se passava o tempo, mais eu me afeiçoava ao contexto do Espiritismo, de tal forma que a sua atuação tornou-se muito dolorosa. Nos momentos difíceis da minha vida ele esteve presente.
No rol das minhas lembranças, vem-me à mente uma tentativa malograda de suicídio, quando eu contava dezenove anos, por afogamento, no mar.
Numa noite - eu tinha certas visões desagradáveis então, sofri um desses fenômenos e ouvi uma voz me chamando e me hipnotizando. Dizia que a solução para mim - a única - era destruir o corpo, porque, na Terra, eu sofria muito, e, se destruísse o corpo, iria ser plenamente feliz, partiria para o Mundo Espiritual, onde estavam as pessoas que me amavam, aquelas que estão vinculadas a mim, e que já era tempo de me libertar dessa canga difícil, que era a vida física.
Morávamos perto da praia. Eu saltei a janela e fui sendo arrastado pela indução hipnótica em direção ao mar. Era madrugada e não havia ninguém por perto. Nilson, que é muito vigilante, percebeu o que estava acontecendo e me acompanhou. Notou, quando eu me lancei mar a dentro. As primeiras ondas molharam-me os pés, mas eu prossegui. (Até hoje eu não sei nadar). Fui entrando sob aquele fascínio, até que as ondas bateram no meu rosto, provocando-me um choque e despertando-me. Ao dar-me conta da situação, fiquei desesperado: ver-me com roupa dentro do mar, de pijama e sem saber o que havia acontecido! 
Nilson estava próximo, orando, porque ele conhecia a interferência Divina, que nunca falta. Nesse exato momento, quando ele me viu a debater e gritar, atirou-se às ondas e me resgatou, trazendo-me para a praia.
Quando eu ia saindo das águas, amparado por ele, vi a Entidade, com aspecto dominador, dizendo que me mataria, não adiantava recalcitrar: ou eu abandonava o meu compromisso recebido com o Espiritismo ou ele me destruiria. Repetia que eu tinha deveres para com a sua antiga doutrina e que a estava conspurcando; que o meu labor era com a religião tradicional; que não tinha o direito de me desviar dela, fosse qual fosse a justificativa.
Passaram-se os anos. Aquele foi um período amargo da minha vida; o dos testemunhos. Esse Espírito criou-me injunções, as mais dolorosas.
Uma delas ocorreu à época em que eu ainda estudava. Sempre tive muita vontade de estudar e havia feito o chamado artigo 100, que corresponderia hoje ao supletivo do 1.° grau, e estava preparando-me para fazer o supletivo do 2.° grau, que naquele tempo se chamava artigo 91.
Em certa ocasião, quando eu ia a uma aula, depois do expediente no IPASE, caminhava tranqüilamente pela rua da Misericórdia, que é muito movimentada, quando alguém, subitamente, me puxou pelas costas. Voltei-me, julgando ser um colega. Recebi um golpe, um murro no rosto, que me lançou sobre uma vitrine de uma joalheria, provocando um certo pânico e um grande susto. Juntaram-se algumas pessoas, eu tive uns cortes, mas, quando caí, depois que me voltei de frente para o agressor, ele disse: "- Perdoe-me, desculpe-me! Eu tive a impressão de que você era o indivíduo que anda perturbando a paz de minha mulher e quis puni-lo. Você me desculpe!"
Houve uma confusão momentânea, e enquanto alguém me ajudava a levantar, no meio daqueles rostos, eu o vi.
Como de outras oportunidades, ameaçou-me:
- Vou humilhar-te de tal forma, tantas vezes, que não terás outra alternativa, senão a de se render, ou te matarei.
Eu residia muito distante do centro da cidade, e sempre me sugestionei que qualquer coisa que me sucedesse a minha primeira providência seria a de voltar para casa, imediatamente.
Como é natural, fiquei muito aturdido, desembaracei-me das pessoas, enxuguei o rosto com o lenço e saí. Desci uma rua do Pelourinho, em direção da Cidade Baixa, mas, estava tão atordoado que me perdi, e, por passar seguidamente pela porta onde um amigo tinha uma loja de calçados, este me viu e notou a minha palidez. Chamou-me, conversou comigo, e, só nesta hora, voltei à normalidade, seguindo, então, para casa.
Esta bofetada me marcou muito a vida, porque vi como os Espíritos podem, em certas ocasiões, armar um indivíduo para cometer um crime contra aqueles a quem detestam, desde que o outro ou aqueles dêem margem, entrando no processo de sintonia. Eu orava, tinha a vida normal de uma pessoa que procura manter a dignidade, já trabalhava na mediunidade, na pregação, mas isto lhe açulava, cada vez mais, o ódio.
Posteriormente, em 1960, no dia 13 de janeiro, eu estava em Uberaba. Havia sido orador de uma turma de médicos, e a bondade de Chico Xavier sempre me agasalhou em seu coração generoso.
Naquele tempo, Chico Xavier participava das reuniões da Comunhão Espírita Cristã, em Uberaba, e no grupo de desobsessão, eu tinha permissão de tomar parte como se fosse membro que residisse fora. Sempre que estava na cidade, naquele dia - quarta-feira - eu me integrava na sessão.
Fui à reunião, participando dos trabalhos habituais, e vários Espíritos se comunicaram através dos diversos médiuns presentes.
O momento culminante, porém, foi quando esse mesmo Espírito que me vinha perseguindo se incorporou no médium Chico Xavier e, num gesto de quem mete a mão no bolso e tira algo, me disse como se estivesse a ler anotações:
- Estou aqui com a sua ficha. Você se lembra do ano de 1955 quando foi a Apucarana, por primeira, vez?
Eu não me lembrava.
- Pois vou refrescar-lhe a memória. E começou a citar fatos (que eu passei a recordar), que haviam sucedido naquela oportunidade, na cidade citada do norte do Paraná.
- Recorda-se - prosseguiu, citando outro fato - do dia 14 de julho do ano passado, quando você estava no Rio de Janeiro, à rua tal, número tanto , apartamento número tal?
Eu me recordei de um incidente muito desagradável, quando uma pessoa que estava dialogando comigo, sem qualquer motivo aparente, foi tomada de cólera e provocou uma discussão, à que eu procurei não dar prosseguimento, sofrendo então uma agressão de forma tão inesperada, que me chocou profundamente.
Guardei a data por ser o dia da libertação, da Queda da Bastilha.
A pessoa foi investindo contra mim, enquanto eu fui recuando até à janela da sala, já não havendo mais para onde afastar-me e sentindo nos olhos da criatura como ela estava possessa, com desejo de atirar-me de lá de cima era o 12º andar do edifício. Com muita habilidade, em silêncio, eu fui saindo dali, desviando-me, e evadi-me do lugar, permanecendo com aquela impressão terrível, que por pouco não me prejudicou a conferência nessa noite, no Colégio Militar, na Tijuca.
O Espírito dizia com rudeza:
- Fui eu quem incorporou essa pessoa para destruir-lhe a vida. Eu sei que não destruirei, mas aniquilarei o seu corpo e ficará do nosso lado. Eu venho hoje aqui para termos um acerto.
O que é impressionante - e grave - é que o Espírito falava com autoridade sobre mim. Apesar do ódio que ele destilava, eu sentia respeito e consideração, não experimentando rancor.
- Você se comprometeu conosco - afirmava, exaltado -, a chamada Igreja militante, para engrossar as fileiras do clero, quando retornasse à Terra, e trai-nos vergonhosamente, indo participar de uma doutrina abjeta.
Passou a atacar o Espiritismo com muita nobreza de linguagem, mas com muita agressividade emocional, utilizando-se de sofismas muito bem construídos , tais como:
- A minha reação contra o Espiritismo tem fundamento, porque o Espiritismo está barateando a mediunidade, o carisma, a graça, o dom, deixando que esta concessão seja colocada no ridículo de um populacho incapaz de a compreender.
Eu retruquei, algo tímido:
- Meu irmão, o senhor é a maior prova da legitimidade, da justeza do fenômeno espírita, porque o senhor está incorporado num médium, conversando comigo.
- Este manequim de quem me utilizo - respondeu, prontamente -, é um instrumento dócil, ele tem feito jus a ser veículo dos Espíritos, porém, o Espiritismo barateia a mediunidade. Como você consideraria, se eu, um sacerdote da respeitável religião, fosse a um picadeiro de circo para distribuir a sagrada eucaristia, entre palhaços, feras e o povo que ali foi para divertir-se? A eucaristia, para nós, é o momento culminante da união com Deus. Com os senhores, os espíritas, podem atrever-se a apresentar esta eucaristia no circo das misérias humanas?
Bem se vê que era um sofisma, mas, aparentemente, muito bem colocado, por que nós não barateamos a mediunidade, nós não a vulgarizamos, apenas repetimos Jesus, trazemos o fenômeno mediúnico, ou melhor, explicamos o fenômeno mediúnico a fim de facilitar às pessoas a se encontrarem consigo mesmas. Ao mesmo tempo, é a prova robusta da imortalidade da alma, preconizada por todas as religiões. Todavia, ele usou de um outro argumento:
- Quando o Espiritismo apareceu, a Igreja Romana podia ser comparada a um holofote que projetava imensa claridade no céu enquanto ele era uma talisca de fósforo acesa que se abria na treva, incapaz de competir com o poder e a opulência da Igreja. Que vemos agora? Observamos que o Espiritismo se transforma em uma constelação de astros a iluminar os céus e a Igreja vai apagando a sua claridade.
- Mas, meu irmão, a culpa não é do Espiritismo, o senhor me desculpe.
- Você, porém, é um desses responsáveis, porque anda com o archote da fé, de um lado para outro, buscando iluminar consciências, incendiando tudo à sua passagem. Vou dar-lhe uma determinação: retorne a Salvador, procure o sacerdote fulano de tal (cujo nome não devo declinar porque ainda está encarnado), na igreja tal, com quem mantenho contato direto e apresente-se para confessar-se, arrepender-se, tomar hábito e servir à causa da Verdade.
- Eu não posso, o meu compromisso é com Jesus. Eu sou um empregado a serviço de uma Nova Era. Não compreendo por que o irmão se volta contra mim. O irmão deveria voltar-se contra Aquele que me dirige; porque, se o senhor se voltar contra Ele, Ele me liberta. Eu sou escravo, liberte-me dEle e eu passarei de mão, com muito prazer, se for isso que aconteça. Mas se o senhor não me libertar dEle, eu não posso, não tenho como me evadir da presença de Jesus.
- Não, contra Ele eu não posso - retrucou - mas, contra você eu posso . Farei tudo por persuadi-lo. Utilizar-me-ei da bondade, da oferenda de recursos e valores para você triunfar no mundo. Mas, se você se obstinar, veja bem (e utilizou de outro sofisma): O pastor está conduzindo as ovelhas, uma delas tresmalha ou se desvia; ele a chama e vai atrás. Se não a alcança, usa o bordão e ela volta ou morre. Mas ele não a deixa, a não ser que a percaem definitivo. E o que farei contigo. Ou retorna para o nosso seio ou lhe bateremos tanto de bordão, eu e o meu povo, que, aonde quer que vá, a humilhação, o desrespeito e o sofrimento lhe estarão esperando.
E me fez um prognóstico sombrio, que se concretizou, em grande parte, pelo menos:
- Ou aceita a minha voz - é o meu ultimato - ou aonde for pregar a sua malsinada Doutrina, defrontará com a minha presença, sendo desmoralizado pelos seus correligionários e confrades. Não terá coragem de abrir a boca para coisa nenhuma. O momento é hoje e se você não voltar ao nosso compromisso, prepare-se para testemunhar se é verdadeira a sua integração nesse trabalho ou não.
A comunicação alongou-se. Ele declinou o nome: J.T.S.
A verdade é que, dois anos depois, exatamente, eu fui convidado a um pesado testemunho. Por onde quer que eu haja passado, durante vários anos e até hoje ainda, a partir do dia 10 de junho de 1962 as provações me aguardavam: a ironia, a zombaria, o descrédito e tantas coisas que nos levam ao sofrimento, chegavam e se avizinhavam rudes. Todavia, não desanimei.
Anos depois, mesmo continuando as provas, as lutas e as dores, ele me reapareceu.
Um esclarecimento: comecei a chamar esse Espírito pelo nome de o "máscara-de-ferro". Eu havia assistido um filme, fazia muitos anos, sob esta epígrafe. No dia da bofetada, na rua da Misericórdia, quando cheguei à casa e entrei discretamente para que os meus pais e a minha irmã não me vissem, segui ao meu quarto. Ali, ele me apareceu e o seu rosto me fazia lembrar a personagem do filme com a "máscara-de-ferro", só que o ferro estava como que incandescente. Aquilo me impressionou de forma tal, que eu, jovem ainda, com algum atavismo clericalista, ajoelhei-me aos seus pés e lhe pedi perdão.
- O senhor me odeia tanto - disse-lhe - que deve ter um motivo muito forte para isto; então, perdoe-me. Dê-me uma oportunidade de reparação, eu já não sou aquela mesma pessoa...
- Você mudou apenas de roupa, mas é a mesma pessoa e eu o matarei. Várias vezes ele me apareceu com aquela expressão terrível.
Anos depois, por volta de 1976, portanto, quase trinta anos de combate diário, de assistência quase diária, ele retornou e falou-me:
- Vou deixá-lo por um período. Você não me convence, porque eu o conheço, sei das suas dívidas; mas você me venceu, temporariamente, pela paciência, pela humildade, pela abnegação, pelo trabalho que vem desenvolvendo na sua comunidade e em si mesmo.
Eu fiquei muito feliz, é claro.
Passaram-se os anos. Certo dia, em circunstância muito dolorosa, chegou à "Mansão do Caminho" uma criança, e, como era natural, nós estávamos impossibilitados de receber novos candidatos por falta de espaço e de recursos. Vendo a criança num tal estado de abandono, de debilidade orgânica, de sofrimento e miséria, comovi-me e me lembrei de Jesus. Perguntei-me, mentalmente: Como faria Jesus em uma circunstância destas?
A consciência me disse que Ele a receberia. Foi o que eu fiz. Imediatamente convocamos os nossos colaboradores residentes e a criança foi encaminhada a uma das casas.
Nesta noite, apareceu-me aquele Espírito e me informou, emocionado:
- Agora você me convenceu. Porque esta, a quem acaba de receber, é a minha mãe, que está de volta ao corpo. Eu tenho que amar a quem vai ajudá-la na sua tarefa de redenção. Ensine-me, agora, o que fazer, para aprender a amar Jesus, na visão correta, e, se Deus me der vida, poder retornar e vir ainda receber o afago das suas mãos nessa sua casa...
Encerrava-se, assim, o capítulo do "máscara-de-ferro", de uma forma sublime, demonstrando a excelência do amor e o poder da caridade. Ele continua aparecendo-me, hoje, menos hostil, quase afável; já participa das nossas reuniões doutrinárias e mediúnicas, e, de vez em quando, traz outros correligionários, outros companheiros que têm o mesmo problema, para receberem a ajuda em nossa casa.
 

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